Prof.ª Maria Luiza Redentora:

"...Mesmo que para isso tenha que dar minha cara a tapa, e lançar-me na guerra sem armadura,
vou peitar isso tudo mesmo que fique aqui só e insegura..."

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Até quando esperar?

Saiu hoje o Ranking da Webometrics que considera USP a 38ª melhor universidade do mundo, sendo a mais bem colocada no Brasil e na América Latina e tendo melhorado 49 posições em relação a janeiro deste ano.

Para além da discussão do mérito de tal ranqueamento, me pergunto: Como é possível entender a dissonância entre a melhora na classificação e os sérios embates políticos internos, com greves cíclicas, sendo que última terminou a pouco mais de 1 mês e meio? Na certa é muita vadiagem, pura baderna política ou maconheira, responderão os jovens-só-me-importo-comigo-de-bengalas de plantão. Mas a verdade que vejo passa bem longe dessa ótica. Partindo do pressuposto que legitima o ranqueamento, não existe um antagonismo entre as partes, mas sim, uma pergunta inquietante que salta aos olhos : Se a Usp consegue melhorar sua classificação e se manter como a melhor na américa latina, apesar de todos os seus problemas internos, em que pé estaria se houvesse de fato investimentos estatais pesados e uma boa política para a melhorar da educação superior? Veja: existem várias USPs. A que recebe dinheiro privado e perde dinheiro público através das fundações, mas que garante o mínimo de infra-estrutura adequada ao ensino. Enquanto há outra que só pouco recebe dinheiro público mas que é incapaz de manter salas de aula sem infiltrações, bem ventiladas e muito menos com acesso a equipamentos multimídia. Quem conhece a Usp sabe que me refiro aqui a FEA e a FFLCH, que utilizo com casos extremos da notória bagunça administrativa que é a Universidade de São Paulo.
É necessário que se melhore as condições de ajuda estudantil, muito criticada por quem não precisa delas, mas que são vitais para quem as utiliza. Além disso, antes que todas as faculdades da Usp corram choramingando por alguns trocados a iniciativa privada, para conseguirem garantir o bom rendimento de seus cursos, é necessário que se aumente o repasse do ICMS, a anos congelado, para a universidade pública, além de se rever a distribuição interna deste. Outro ponto importante diz respeito aos funcionários e professores da universidade, que precisam ter seu trabalho melhor remunerado e valorizado, com reais perspectivas de crescimento profissional, caso contrário somente se encontrará, a exceção de alguns mártires, entre os concursados, professores e servidores desmotivados, e entre os terceirizados e temporários, o medo de ir pra rua, ambas qualidades antagônicas ao melhor rendimento do ambiente acadêmico.

Assim, encarno o neo-hippie sonhador e requestiono seriamente: se estamos assim agora com uma escassez gritante de recursos para a educação superior – e na educação geral como um todo - onde estaríamos se nos puséssemos a valorizar o conhecimento como meta máxima a ser melhorada?

domingo, 30 de agosto de 2009

2º motivo da rosa

"A lua" - Tarsila do Amaral

Estava aqui pensando sobre algumas alfinetadas que recebi e folheando um livro de poesias me deparei com esta de Cecília Meireles, dedicada ao Mário de Andrade. Céus! Me parece que cada facada que ouvi, e outras não ditas, é uma palavra dessa poesia...

Por mais que te celebre, não me escutas,
embora em forma e nácar se assemelhes
à concha soante, à musical orelha
que grava o mar nas íntimas volutas.

Deponho-te em cristal, defronte a espelhos,
sem eco de cisternas ou de grutas...
Ausências e cegueiras absolutas
ofereces às vespas e às abelhas.

E a quem te adora, ó surda e silenciosa,
e cega e bela e interminável rosa
que em tempo e aroma e verso te transmutas!

Sem terra nem estrelas brilhas, presa
a meu sonho, insensível à beleza
que és e não sabes, porque não me escutas...
* * * * *

"Eu não devia te dizer mas essa lua, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo" (Poema das sete faces)

sábado, 29 de agosto de 2009

Béradêro

Já faz algum tempo que sempre escuto pessoas me falarem sobre essa música do Chico César. Na verdade costumavam me declamar a letra, que é ótima. Hoje me lembrei disso e baixei o primeiro álbum dele "Aos Vivos", lançado em 1995, cujo primeira faixa é esta. Resolvi então dar uma olhada no youtube e encontrei essa versão dele com a Jazz Sinfônica, em uma apresentação no Palace, em junho de 1996, no extinto Kaiser Bock Winter Festival. Confiram:


Os olhos tristes da fita
Rodando no gravador
Uma moça cosendo roupa
Com a linha do Equador
E a voz da Santa dizendo
O que é que eu tô fazendo
Cá em cima desse andor

A tinta pinta o asfalto
Enfeita a alma motorista
É a cor na cor da cidade
Batom no lábio nortista
O olhar vê tons tão sudestes
E o beijo que vós me nordestes
Arranha céu da boca paulista

Cadeiras elétricas da baiana
Sentença que o turista cheire
E os sem amor os sem teto
Os sem paixão sem alqueire
No peito dos sem peito uma seta
E a cigana analfabeta
Lendo a mão de Paulo Freire

A contenteza do triste
Tristezura do contente
Vozes de faca cortando
Como o riso da serpente
São sons de sins, não contudo
Pé quebrado verso mudo
Grito no hospital da gente

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Lei de Anistia

Hoje hoje a lei de anistia, sancionada pelo ilegítimo presidente João Figueiredo, completa 30 anos, envolta de um debate a respeito de sua aplicabilidade em relação aos crimes de tortura executados por agentes de nossa ditadura. Como expoentes do debate temos, de um lado, o atual ministro de justiça Tarso Genro, e de outro, o atual ministro de defesa Nelson Jobim. Para um, os crimes de tortura jamais poderiam ser enquadrados pela lei por se tratarem de crimes comuns e não políticos, sendo que mesmo durante a vigência da ditadura ,a prática da tortura, no âmbito da lei, sempre foi considerada crime. Para outro, a lei de anistia é caso encerrado. Ela veio para reconciliar nosso país garantindo uma anistia geral e irrestrita para ambos os lados, sendo que não se cabe o atual debate por não se poder "desanistiar" alguém que foi anistiado de seus crimes.

Quanto a mim penso o seguinte: já é mais que a hora desse país reabrir os casos de tortura e passar, não só na esfera simbólica, mas na criminal, a julgar os ex-agentes e ex-comandantes que cometeram inescrupolosos crimes. Por mais que a lei de anistia tenha sido importante para a redemocratização do país, ela jamais pode ser vista como imutável e deveria ser revista. Não considerar isso é legitimar a própria ditadura, ao passo em que se continua a julgar como criminosos, anistiados, as pessoas inocentes e vitimas dos anos de chumbo. Se por um lado temos agentes e comandantes que agiam no interesse do governo subversivo, de outro temos guerrilheiros e grupos armados que lutavam para derrubar o regime de exceção, mas em meio a tudo isso encontram-se também inúmeros artistas que tiveram que deixar país por sua arte e suas ideias, outros tantas inúmeras pessoas presas pelo envolvimento com o movimento estudantil, e mais outras tantas pessoas que nada tinham a ver com política mas que foram presas e torturadas, por erros da inteligência das forças armadas. O que dizer de uma lei que compara como igualmente criminosos Chico Buarque de Holanda e Carlos Alberto Ustra, Caetano Veloso e Gilberto Gil, e Sérgio Paranhos Fleury, entre outros igualmente anistiados?

Reclama-se ainda das indenizações hoje concedidas a quem foi prejudicado pelo regime militar. É possível que exista um certo exagero nessas ações, entretanto, é mais do que legítimo reparar, financeiramente, quem teve sua vida destruída durante àquele período. Pessoas que tiveram que deixar o país e suas profissões para não serem torturadas, famílias cujos entes queridos foram assassinados pelos agentes do estado, e tantas e tantas outras que foram brutalizadas nos porões da ditadura, e que ainda hoje sofrem pelas sequelas físicas (infertilidade, paralisia, defeitos físicos, ...) e psicológicas resultantes de seus interrogatórios.

Já é mais que a hora desse país passar a julgar, a exemplo da justiça argentina, os crimes dos ex-agentes, comandantes e governadores do governo que subverteu nossa democracia em 1964 e instaurou um regime de exceção. Porém , mais do que isso é um imperativo que todos os remanescentes arquivos da ditadura sejam desclassificados como confidenciais e sejam abertos para conhecimento público. É um absurdo que continuem lacrados, mesmo após dois presidentes que foram perseguidos pelo regime militar (FHC e Lula). Sem eles a história do país fica comprometida e a consolidação de nossa democracia, fragilizada.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Tristeza

Hoje não estou vendo a vida cotidiana com bons olhos. E na procura de algo que me animasse encontrei essa maravilha. É uma apresentação do Baden Powell ainda jovem, em Berlim, filmada para um documentário. De fato, era tudo que precisava.

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Tristeza por favor vá embora, minha alma que chora
Está vendo o meu fim...Fez do meu coração a sua moradia
Já é demais o meu penar, quero voltar àquela vida de alegria
Quero de novo cantar

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O Solitário

"The dog", Goya
Para mim é odioso seguir e também guiar.
Obedecer? Não! E tampouco - governar!
Quem não é terrível para si, a ninguém inspira terror:
E somente quem inspira terror é capaz de comandar.
Para mim já é odioso comandar a mim mesmo!
Gosto, como os animais da floresta e do mar,
De por algum tempo me perder,
De permanecer num amável recanto a cismar,
E enfim me chamar pela distância,
Seduzindo-me para voltar a mim.

Nietzsche
Tradução de Paulo César de Souza

Um fio de esperança


Um salve ao poder judiciário de nossos hermanos do sul. Por decisão da suprema corte argentina desde de ontem o porte de pequenas quantidades de maconha por usuários deixa de ser crime no país. A corte considerou como inconstitucional a criminalização do consumo da maconha por maiores de idade que o façam em local privado. Entretanto, o comércio e o uso em locais públicos continua sendo crime, mas já é um grande passo no debate sobre as drogas no país.
Não poderia deixar passar batido tal notícia. Em oposição direta ao poder judiciário argentino, enquanto lá se descriminaliza o uso, o nosso vem sistematicamente censurando - sim é a palavra mais do que certa para descrever isso - a realização da mundial "Marcha da Maconha" na maioria dos estados, pela suposição, fictícia, de apologia ao consumo da droga. Para nós resta ao menos um ex-presidente (FHC) que tem se proposto a discutir abertamente o tema em fóruns sul americanos.
Além disso, nessa mesma semana começou a ser vinculado em algumas redes de televisão - as que aceitaram - do estado estadunidense da Califórnia uma propaganda em prol da completa legalização da maconha. Lá, onde o uso terapêutico é legal a anos, existe um ostensivo movimento que enxerga na cannabis a solução para os problemas econômicos do estado.
E não é para menos: a cannabis sativa tem diversos fins com utilidade industrial. A fibra da planta é muito resistente e foi amplamente utilizada até o início do século passado quando passou a ser perseguida. Para-quedas, cordas de navio, e diversos outros produtos derivavam da cannabis, conhecida também como cânhamo. Pode-se também fabricar papel e diga-se de passagem com até 1/6 da área que normalmente se utiliza nos processos de hoje em dia.
O óleo da planta é igualmente bom e de também vasta aplicação industrial - algo como o óleo da mamona. Há seus claros fins recreativos, medicinais e ornamentais - sim é uma bela e exótica planta. Enfim, a legalização da produção e comercialização da cannabis traria um aumento de empregos e de receita gerada pelos impostos, além de tornar disponível o dinheiro atual que é investido em seu combate.
Quanto a mim, concordo e também defendo esta tese, por mais que me contente por hora em descriminalizar seu uso.
Este é um tema delicado e conflituoso e merece outros posts mais específicos. Escreverei mais.

Pequeno Tesouro

A poucas semanas atrás, antes que essa gripe maldita me atormentasse, comecei a tirar a música "Último Desejo", de Noel Rosa, na minha aula de canto. Pesquisando no youtube alguma versão pra me guiar na complicada melodia me deparei com isto aqui. Meu Deus!!!!!!!!!!! É estonteante, maestral, gigantesca essa versão apresentada em um especial da Tv Globo em 1975 homenageando o , talvez , já um pouco esquecido Noel Rosa. A música casa tão bem com a Maysa, com seu jeito e voz , e o acompanhamento na gaita de Rildo Hora é tão lindo e inusitado, que não conseguia fazer nada mais do que olhar frisado ao vídeo quase sem piscar, e por isso compartilho e divulgo aqui.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Lei antifumo


A quase um mês entrou em vigor esta lei que baniu de bares e restaurantes, entre outros locais públicos total ou parcialmente fechados, qualquer derivado do tabaco.
E agora que todos já estão se acostumando com essa abusiva ideia desmascaram-se os argumentos oportunistas.
Antes de ser aprovada donos de bares, restaurantes e afins clamavam a pleno vapor a falência imediata de quase todo o setor que se seguiria a lei. Ora, é óbvio que isto não aconteceria, a maioria da população é de não-fumantes, mesmo sendo os fumantes um público-alvo que não pode ser desconsiderado em seu poder de compra. Entretanto, já não se pode dizer o mesmo de donos de tabacarias que devem estar passando por mal bucados.
Quanto ao cristão sentimento de salvar a saúde dos indefesos garçons não-fumantes percebe-se o oportunismo desse argumento ao, de forma diametralmente oposta, desconsiderar então a saúde dos carcereiros não-fumantes, já que única exceção da lei vale para os presídios.
O que me leva para o próximo ponto: a quem de fato quer agradar? A lei veio para salvaguardar a saúde de todos os cidadãos, excluindo-se portanto os presos não-fumantes e diga-se de passagem, a maioria da extrema periferia da capital, onde o único braço de serviços do estado presente é polícia, quando muito, e onde não se pode esperar haver fiscalização anti-fumo.

Há ainda por de trás de todos os argumentos favoráveis a lei uma espécie de revanchismo. Os fumantes há décadas , apesar que cada vez menos, monopolizavam os espaços públicos fechados com suas tragadas, e os incomodados se afastassem. Assim, inverte-se a equação, para gozo geral dos anti-tabagistas de plantão,que gritam vitoriosos em uníssono: "Vocês vão ter que nos engolir!".
O que mais me assusta nessa ideia é que o ódio armazenado é tão grande que não se importam em apoiar e defender uma proposta por demais autoritária. "Autoritária não! Democrática! É para o bem da maioria!" retrucarão outros, mesmo que a democracia seja um sistema que para além de garantir o interesse da maioria, sirva para impedir que esta massacra suas minorias (lembrem o nazismo: Hitler foi eleito). Veja: uma coisa é restringir severamente o fumo em locais públicos fechados, outra completamente diferente é resolver o problema banindo de todo e qualquer lugar toda uma parcela significativa da população que faz uso legal de determinada substância. O ponto aqui é simples: deveria haver a possibilidade de locais destinados exclusivamente ao público fumante, que seriam sem sombra de dúvida uma espécie de nicho de mercado. Do que tem medo? Que ao permitir um direito democrático como esse a maioria dos bares e casas noturnas se rotulariam como destinadas ao fumo? O que teriam a ganhar se a maioria da população é de não fumantes. De outra forma continuaria tudo no mesmo? Ora, o estado possui outros meios, que não seja a repressão, para garantir seus interesses. Todos esses locais são empresas privadas que visam o lucro, agem de acordo com a lógica do capital, e portanto caberia ao estado impor uma sobretaxa dissuasória aos mesmos, ou oferecer incentivos fiscais, na forma de abatimento de taxas, aos estabelecimentos que espontâneamente proibissem o fumo. Mas , obviamente, aparecer para a população como um fidalgo cavaleiro que luta por sua saúde gera mais votos do que o sensato administrador que garante o direito de todos.
Por fim, desabafo: Estou de saco cheio. Sou fumante, apesar de pretender parar, e sim, sinto falta de poder ir a um bar com amigos para escutar uma música ao vivo, bebendo algo alcoólico e fumando um cigarro. Prazer este que me é negado por lei. Se isto não é um dos passos em direção para a matrix, o estado orwelliano, me digam, o que é?

*
* *

"... vou formigando e fumando - que se danem os preceitos! -
alucinando e pensando: Ser livre para ser preso? ..."
Letra do Dessamba (de minha autoria)

Abertura

Depois de muito -MUITO MESMO! - prolongar a idéia de manter um blog, finalmente o faço, e a partir de hoje irei escrever aqui sobre o que me der vontade, cantando idéias, achares, arte e política deste, e não só, canto de concreto.
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"...SE PREPAREM ...
uahahahahahaha!"
Scar, Rei Leão (Disney)

E assim abro este blog como grandioso poema "Ode Triunfal", de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa):
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À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
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Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
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Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
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Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
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Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita Dos comboios estrénuos,
Da faina transportadora-de-cargas dos navios,
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!
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Horas europeias, produtoras, entaladas
Entre maquinismos e afazeres úteis!
Grandes cidades paradas nos cafés,
Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas
Onde se cristalizam e se precipitam
Os rumores e os gestos do Útil
E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!
Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!
Novos entusiasmos de estatura do Momento!
Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,
Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!
Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!
Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,
Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,
E Piccadillies e Avenues de L'Opéra que entram
Pela minh'alma dentro!
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Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!
Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!
Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!
Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!
Presença demasiadamente acentuada das cocotes
Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)
Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,
Que andam na rua com um fim qualquer;
A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;
E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra
E afinal tem alma lá dentro!
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(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)
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A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas,
E de vez em quando o cometa dum regicídio
Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus
Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!
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Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto
E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!
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Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!
Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!
Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
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Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
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Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!
Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente.
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!
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Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -
Na minha mente turbulenta e encandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.
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Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais!
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).
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Eh-lá o interesse por tudo na vida,
Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras
Até à noite ponte misteriosa entre os astros
E o mar antigo e solene, lavando as costas
E sendo misericordiosamente o mesmo
Que era quando Platão era realmente Platão
Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,
E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.
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Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo de navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!
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Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre dentes o teu cap de duas cores!
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(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!
Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)
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Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!
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Ó tramways, funiculares, metropolitanos,
Roçai-vos por mim até ao espasmo!
Hilla! hilla! hilla-hô!
Dai-me gargalhadas em plena cara,
Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
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Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,
Que emprega palavrões como palavras usuais,
Cujos filhos roubam às portas das mercearias
E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -
Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.
A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosamente gente humana que vive como os cães
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita,
Nenhuma arte criada,
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim,
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!
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(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda,
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)
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Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!
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Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo horizonte!
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Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
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Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos brocas, máquinas rotativas!
Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro.
Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!
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Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!
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Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-la! He-hô! H-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!
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Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!
Londres, 1914 - Junho