Prof.ª Maria Luiza Redentora:

"...Mesmo que para isso tenha que dar minha cara a tapa, e lançar-me na guerra sem armadura,
vou peitar isso tudo mesmo que fique aqui só e insegura..."

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Seria Sonho

"Sonho de Poeta", de Tchalé Figueira
"Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura porque não são sonhos."
(Álvaro de Campos)

Era noite. Fazia frio e eu estava de chinelos, embora o resto do corpo estivesse bem agasalhado. O vento gelado soprava mas só aos meus pés incomodava, torturando meu mindinho. Eu voltava com um copo quente de café com leite na mão, enquanto explicava minhas grandes ideias a minha amiga que me acompanhava. Foi quando o vi. Estirado no chão na frente da entrada do metro, uma estranha forma não se movia. O percebi. E percebi que todos a minha volta também o percebiam. Não modificavam o ritmo de seus passos, embora desviassem brevemente de seus trajetos pré-concebidos. Foquei meu olhar em seu diafragma, e depois em seu peito, esquadrinhando seu corpo a procura de vida: Estaria ele morto? Tentei diminuir meu andar, mas o olhar de minha amiga era inquisitivo “O que se há de fazer?!”. Continuei andando e logo apenas o via com minha visão periférica, até somente enxergar as rodas de jovens artistas conversando. Mas não consegui socializar. O que era - vejam o que era e não quem – aquela figura a frente da entrada do metro? Não sabia o que sentir. Vergonha por me importar? Raiva por não parar? Ódio ou tristeza por sentir pena, por não saber o que fazer? Curiosidade pelo sem sentido? Crescido em uma grande metrópole tenho meus nervos de aço, meus olhos filtram a poluída paisagem urbana de postes, fios, placas, pessoas jogadas no chão, lixo, carros estacionados, etc, mas há certas vezes que meu corpo inteiro se contorce. O que aquele o homem fazia ali? E se ele estivesse morrendo naquele exato momento? Não. Não seria possível que ele morresse ali na frente de todos sem que ninguém o acudisse. Ou seria? Prefiro pensar que ele estivesse protestando contra as graves falhas do sistema politico, ou que ele estivesse consciente que o mundo é uma grande convenção entre olhares, e se o mundo tal como ele enxerga só existe para si, talvez parando totalmente pudesse parar o turbilhonante frigorífico da vida. Talvez pensasse que ao não mover seu corpo toda sua história massacrante deixaria de existir, e se assim o fizesse por tempo suficiente o mundo inteiro se reconstruiria mais tragável. É claro que não. Ele estava lá. E eu não tinha mínima ideia do porque. Me afastei das risadas e voltei para saber dele. A essa altura três seguranças do metro já estavam a sua volta, e ele continuava estático. Riam constrangidamente por não saber o que fazer. Seus empregos exigiam que o retirassem dali, mas o homem não esboçava reação. Estava vivo – Sim! Estava Vivo! - mas não se mexia. Tentaram o levantar sem sucesso. Decidiram então, sem se falar, arrasta-lo dali , e o erguendo pelos braços e pernas, o levaram para a escura e suja área ao lado da entrada do metro, o apoiando no muro da estação, sem ele reagisse de qualquer forma. O mundo então se reconstruiu sem se dar conta do que havia passado. As pessoas não mais precisavam modificar sua rota; os seguranças voltaram a seus postos e eu , sangrando, voltei para minha aula com minha consciência já coagulada.

3 comentários:

  1. Estou escrevendo um projeto de teatro para a terceira idade e tenho pesquisado diferentes educadores. Hoje comecei a folhear um livro de Leandro Sequeiros, educador espanhol, sobre a educação para a solidariedade. Solidariedade, expressão ambígua, que pode adquirir sentidos diferentes, de acordo com a opção de vida de cada um. Leandro coloca que deve ser uma atitude permanente de abertura pessoal para a aceitação da diversidade e da necessidade de ajudar os outros em seu crescimento pessoal, a partir de sua própria cultura e de seus próprios valores. Que necessita de uma tomada de atitude diante da situação injusta do mundo e a não aceitação da cultura da cegueira e do esquecimento.
    Agora a pouco li “Seria Sonho” e senti o soco no estômago... como posso pensar em solidariedade se estou cega e me esqueci do homem do metrô?

    Helena Aires

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  2. Como estamos despreparados, todos nós ditos "pós-modernos", "contemporâneos", "neo-ocidentais" ou seja lá o que for, a lidar com a compaixão. Esse sentimento agudo, instantâneo, esse soco no estômago. A compaixão é muito perigosa. O que ela não faz com a cabeça de uma pessoa. Desestabiliza e imediatamente desperta outros sentimentos também perigosos... Por essa periculosidade, a compaixão foi rejeitada por muitos como adversa, viciosa, denotadora de fraquezas. Segundo algumas concepções de mundo, a compaixão faz parte dos sentimentos baixos, ao lado da pena, da dó, do pânico. De acordo com essas concepções, a única saída é a afirmação da vida em todos os sentidos, tanto os luminosos quanto os sombrios. É não ser frio ao ponto de prolongar deliberadamente a "cultura da cegueira e do esquecimento", mas também não ser movido à paralisia pela sombra. É a aceitação profunda do fato da vida ser frágil, absurda, curta.

    Genealogicamente, a compaixão nos foi legada pelo judaico-cristianismo no seio de uma cultura voltada à dominação, à escravidão, à exaltação das fraquezas como possuidora de um fluido místico capaz de conectar-nos com um deus-pai absolutista, senhoral, voluntarioso e racional, dotado de um plano-mestre obscuro... Hoje já não queremos prolongar essa cultura que tantos males causou ao mundo. Isso passa pela revisão dos valores que herdamos. Entre eles a sirena da compaixão. Como revalorizar esse sentimento, Wady, Helena e telespectadores?

    É sempre bom explicitar quem está falando. Eu me identifico com a revisão dostoievskiana, nietzschiana, machadiana, camusiana. Tento imaginar Sísifo, o homem condenado a carregar uma descomunal pedra ao topo de uma montanha para vê-la rolar morro abaixo e repetir a tarefa por toda a eternidade, como um homem feliz. Não de uma felicidade ignorante ou ingênua -- o que seria uma armadilha --, mas uma felicidade bem-informada, profunda, oceânica e luminosa. Ver Raskolnikov, Zarathustra, Capitu e Mersault como afirmações da vida, mesmo que seja uma vida espinhosa. Quem sabe até colher algumas rosas. Isso é o que se convencionou chamar espírito trágico. Essa é minha forma de tentar não ser hipócrita.

    Abraços e beijos.

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  3. Esqueci de dizer quanto ao homem do metrô: somos todos responsáveis pelo que pensamos, sentimos e fazemos. Responsáveis, não culpados. É bem diferente. Qual a responsabilidade dele na própria tragédia?

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